Está escuro,
Está muito escuro aqui.
Sinto-me inútil aqui dentro, fechado.
Mas é aqui que me sinto.
Na escuridão…
Na solidão…
Está escuro,
Mas já vi luz! Em tempos…
Perdi-a! Não sei como, nem porquê.
Dissipou-se, qual fogo em lenha seca!
Um motor sem vida, sem som…
Naquela altura eu via, ó se via!
Talvez tenha perdido vontade de ver.
Está escuro,
Mas escuto um tic-tac constante,
Lá longe!
Que me apazigua e me faz cá estar
Indulgentemente,
Adocicado por tais sons.
Está escuro,
Não há luz lá fora,
Ou se a há, eu não a vejo.
Usurparam-ma,
Como se de um cancro se tratasse,
Como se a um Inferno se equiparasse
Está escuro,
Mas ainda há vida!
E que vida!
Oiço o doce rolamento das caldeiras
E tenho esperança!
Talvez um dia…
Está escuro,
Está muito escuro aqui.
H-Rally
Terminamos então com um poema à imagem de Álvaro de Campos, no qual podemos encontrar características das suas 3 (três) fases: Decadentista, Sensacionista (Futurista) e Intimista.
Podemos encontrar neste poema versos que indiciam o tédio de viver e abulia, naturais na fase Decadentista do heterónimo, mostrando-se este conformado com a "escuridão" na qual vive. Já quando evidencia a vontade da ruptura com o presente, da procura por uma nova "luz", associando sempre esta ruptura às máquinas, estamos perante a sua segunda fase, a Sensacionista. Por fim, temos a sua última fase, a Intimista, na qual ele revela as suas saudades da infância, a altura em que "via", e dá a conhecer o seu lado mais céptico.
Álvaro de Campos era assim, possuidor de uma escrita aparentemente incoerente, mas que era, na verdade, inebriante e descomplexada.